Levantemos a seguinte hipótese:

A beleza de uma obra de arte é superior quando suas partes podem ser compreendidas em isolamento.

Em seguida, testaremos o quanto essa ideia resiste na arte. Não para propriamente avaliar o seu grau de verdade, mas sim como um experimento mental que refina a apreciação e a experiência.

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Assumimos a estranha hipótese de que contexto e beleza são pólos opostos. Assim, uma obra que exige conhecimento prévio do público é menor do que pode ser apreciada de imediato.

Este critério causa um reordenamento estético da escala de valores que conhecemos. O Ulisses de Joyce e suas numerosas alusões à Grécia, Shakespeare e à Bíblia o rebaixam ao piso da escala de valores, ao que os versos parnasianos que descrevem um vaso chinês são elevados às alturas. O anônimo compositor medieval ascende ao topo, enquanto a canção contemporânea cheia de ego carrega pouco valor. A produção ativista e suas causas são relegadas ao esquecimento, enquanto a arte pela arte floresce.

Neste universo, a avaliação da arte se dá assim: primeiro, a obra é separada em partes menores e autônomas (desta etapa não atravessa a maioria imensa da produção artística, indivisível). Depois, este exato processo é repetido, e assim ocorre de novo e sucessivas vezes até a menor unidade sintática ser atingida. Então, com uma imensa lupa, o crítico põe seus olhos sob um pedaço atômico e tenta extrair dele algum sentido independente do restante da obra. Se o átomo de arte for cheio de significado, a obra é bem sucedida.

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A Arte de Fuga, maravilha sonora: Com a partitura posta à mesa, abrimos ao acaso o terceiro Contrapunctus. A fuga em mãos, separemos uma página, e fixemos nossa atenção no primeiro compasso visível. Recortemos esse trecho em que quatro vozes se entrelaçam, e agora que exista apenas a primeira frase do compasso. Então percebemos que a integridade musical é mantida: Bach é um mestre.

Isto não quer dizer que cada obra é a junção de átomos completamente independentes e desconectados. Que cada unidade possa ser compreendida em isolamento não contradiz que da sua união não possa emergir um todo cheio de sentido.

Exemplo: o famoso motivo da quinta sinfonia de Beethoven (o destino que bate à porta.) Estas míseras quatro notas, sendo auto suficientes, são declaradas e então aumentadas, subtraídas, distorcidas, reforçadas, fundidas e dissolvidas até o seu limite. Em cada movimento elas se fazem presentes, até que no quarto e último, a metamorfose é consumada e o mesmo tema se move da tensão para o triunfo.

No espectro oposto estão as obras acometidas pelo gigantismo. Imagine um romance composto por quinhentos tomos, no qual a leitura do último exige do leitor a memória precisa do ocorrido no décimo capítulo do centésimo livro. Este é como um edifício cuja arquitetura não pode ser apreendida num único olhar, que exige uma distância intolerável. Aquilo que é humano o demonstra em sua forma, e monstruosidade hipotética é uma arte desumana, pois despreza a memória.

Dito isto, quais são as formas favorecidas pelo nosso critério hipotético? A independência conduz ao isolamento, e por isso as obras que amplificam esses traços têm algo de fantasmagórico. Tais obras habitam um mundo abstrato. Carecem de sujeito, de objeto e objetivo. Versam sobre nada e, por isso mesmo, atingem tudo. Sua natureza é fractal, e assim contém a si mesmas infindáveis vezes.

Como seria o universo composto por nada além da arte que satisfaz este critério? Talvez este intenso paraíso artificial seria insuportável: pois a vida exige o concreto, o sujeito, Ulisses e suas referências, a canção cheia de ego. E, em alguns momentos, o vaso chinês parnasiano.