Separação
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objectivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal.
Adorno & Horkheimer, Dialética do Esclarecimento
A realidade é uma cola dura, grudada, inseparável. Indomável até, quando enfim foi inventada a primeira variável. Era pouco para descrever o todo: criaram mil variáveis, e mil dentro de cada mil. Então havia variáveis demais, e então foi encontrada a justa medida: um punhado delas, que eram independentes e suficientes, se não para reconstruir o todo, para esticar-se nele ao máximo.
Disto surgiu o mito racionalista.
Dois princípios: a separação e recomeço.
Separação é a técnica suprema e fundamental desse credo. Separar para medir, separar para compreender, separa para inferir. Pois o todo era complexo demais, denso demais, caótico demais. A gênese do entendimento foi quando alguém traçou a primeira fronteira. Afrontou o real. Isto começa aqui e termina ali. Não era qualquer fronteira arbitrária: da divisão surge o duplo, e todo duplo carrega sentido. O duplo era simples, mas logo surgiram mais e mais divisões: os colonizadores conceituais alcançaram os territórios mais insólitos e lá riscaram suas mil retas, e mais mil dentro de cada parte, e mil mais no interior de cada forma.
Recomeço é o segundo princípio. É não só apagar a História – requisito mínimo – mas substituí-la pela tábula rasa. É dizimar o Tempo e recolocar em seu lugar a primeira verdade lógica, para então inferir a segunda, a terceira, a milésima e, quem sabe, superar o Tempo. O tempo avança sempre igual, glacial. A cadência da lógica é diferente, quente. A História é tentativa e erro, a lógica é axiomática.
A invenção máxima desse universo de artificialismos é o remédio. Cada pílula uma promessa: ter as substâncias que curam, e nada mais. Lógica básica: extrair o que é bom e eliminar o que é inútil. Matéria que vivia junta, mas foi apartada, desembaraçada, descolada, transportada, encolhida e empacotada. E desembocam nesse círculo minúsculo que carrega(ria) a essência, o essencial, as variáveis que importam.
Não o hábito, o cuidado, o alimento: o remédio. Separação e recomeço.
O pensamento analítico é um pó brilhante, potencial nuclear, fere quem toca sem saber como manuseá-lo. A despeito de toda técnica, toda norma, todo avanço, ainda somos meros aprendizes de feiticeiros, encantados com o pó radioativo que diariamente nos mata.